Por Leonardo Soares dos Santos*
O ano era de 1954. A campanha para vereador seguia
a todo vapor em Campos dos Goytacazes. Os candidatos estavam mais do que nunca
engajados. Quase todos. Porque Jacyr se encontrava bem longe dali. Ainda em
abril ele viaja a Moscou para participar dos festejos do 1º de Maio. Antes ele
passaria por Viena para participar do Congresso Mundial da Federação Sindical
Mundial.
As suas
impressões sobre a experiência na Pátria do Comunismo foram publicadas dias
depois de sua chegada no órgão noticioso do Partido, o Imprensa Popular. Ele afirma em seu relato publicado em 25 de maio que
“as condições de vida e trabalho dos ferroviários soviéticos precisam ser
observadas pessoalmente, para que se tenha uma ideia exata do que são. Parecem
inacreditáveis para um operário brasileiro, acostumado a toda sorte de miséria
e exploração. Mas, eu, que convivi com trabalhadores soviéticos, posso falar
com segurança”.
Relato de Jacyr. Imprensa Popular,
25/05/1954, p. 6.
Jacyr durante a campanha para
vereador. Fonte: Arquivo Pessoal de Tania Barbetto.
Viajei
por trem, na ferrovia Moscou-Leningrado, durante 11 horas, e , tomado da maior
curiosidade, observei tudo o que podia, anotei tudo o que vi. Depois de oito
horas de percurso, os ferroviários são substituídos, a fim de que possam
repousar – durante outras oito horas. Ficam, então, em dormitórios, localizados
em edifícios de vários andares, onde há de tudo: cada quarto é atapetado, tem
as paredes recobertas de veludo, dotado de aquecedores, as camas são luxuosas e
de colchão de molas e, para tornar um completo conforto, há rádios e banheiros
com agua morna, quente, etc. Há ainda nesses dormitórios salões de jogos,
restaurantes, onde se pode comer de tudo. Inclusive caviar. Ao chegar ali, o
ferroviário tem direito a pijama fornecido gratuitamente. Aliás, tudo isso ele
tem gratuitamente e – convem salientar – as oito horas de repouso são
remuneradas, como se fossem extras, isto é, pagas com um acréscimo de 40% (Imprensa Popular, 25/05/1954, p. 6).
Barbetto
também se mostraria maravilhado com as condições de trabalho dos ferroviários
(“tudo é automático”), as habitações dos ferroviários em geral (“onde há tudo o
que é necessário para o conforto de uma família”) e as “vantagens” (educação e
saúde gratuitas, salário adicional após dois anos de serviço etc.) (Idem).
Concluindo
assim o seu relato:
Voltei
realmente entusiasmado da URSS. Vi o seu povo, um povo feliz, sadio e amável.
Cerca-nos de perguntas sobre como vive o povo brasileiro, se temos as mesmas
vantagens que ele. Naturalmente temos de dizer que não... (Idem).
Além da
contagiante descrição do país socialista, Barbetto tomaria conhecimento da
história de Tania, uma das inúmeras jovens que lutaram no Exército Vermelho
contra as forças de ocupação Nazistas. Tania era na verdade seu codinome, seu
nome era na verdade Zoya Kosmodemyanskaya. Foi considerada Heroína de Guerra,
por ter dado a sua vida na Grande Guerra Patriótica. Foi a primeira a receber a
medalha de ouro post-mortem por seu heroísmo. Mal tinha acabado o 9° ano do
ensino fundamental quando os alemães invadiram a URSS. Ela logo se alistou no Konsomol
(União da Juventude Comunista) no final de outubro de 1941 (Yulia Khakimova - How
an 18-year-old girl became a hero of the USSR).
Ficha de filiação de Tania junto ao Konsomol. Disponível
em:
https://www.gw2ru.com/history/946-zoya-kosmodemyanskaya-hero-of-the-ussr
Tania acabaria sendo capturada no pequeno vilarejo de Petreshevo, sendo enforcada pelos alemães em princípios de dezembro de 1941, depois de dias sendo torturada e humilhada. Era o auge da ofensiva nazista de cerco a capital Moscou. Tania tinha apenas 18 anos.
Tanya em foto de 1941. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Zoya_Kosmodemyanskaya#/media/File:Zoya_Kosmodemyanskaya,_1941.png
Trata-se
de um relato pesado. O martírio de Tania é contado em detalhes. De acordo com o
livreto, eis as palavras finais de Tania:
Ei,
camaradas! Porque estão tão tristes? Sejam corajosos, lutem, derrotem os
Alemães, queimem-nos, livrem-se deles! Eu não temo a morte, camaradas. É uma
alegria morrer pelo meu povo!
Me
enforcam agora, mas não estou sozinha. Há duzentos milhões de nós. Vocês não
podem enforcar todos nós. Eles me vingarão.
Adeus,
camaradas! Lutem, não tenham medo! Stalin está conosco! Stalin está vindo!
Contudo,
mesmo diante de final tão trágico, o exemplo de Tania serviu de inspiração na
luta de resistência aos nazistas nas sangrentas lutas desenroladas nas estepes soviéticas.
Sua história
seria exaustivamente contada em todo país como forma de levantar a moral do
povo. A comoção ficaria ainda maior com a entrada em cena da sua mãe. A íntegra
de uma de suas alocuções rodaria por toda a URSS, na parte final, ela conclama:
Camaradas:
guardo no coração uma ferida profunda que o tempo não logrará curar. Mas sinto-me
orgulhosa de que minha filha se haja entregue por inteiro à nossa grande causa
e tenha permanecido firme, honrada e altiva até o último suspiro. Zoia se
defrontou com a morte como deve fazê-lo um homem, um lutador, um comunista.
Consola-me
um fato: Zoia jamais será esquecida. Viverá em meu coração maternal enquanto
este continue batendo, mas também viverá em vossos corações, mesmo quando eu já
não viva. Também vossos filhos a recordarão com ternura....
Uma
das dezenas de estátuas em homenagem a Tania na Rússia. Essa localizada em uma
das estações de metrô de Moscou, Partizanskaïa. Disponível em: https://www.gw2ru.com/history/946-zoya-kosmodemyanskaya-hero-of-the-ussr.
Não só os soviéticos. Barbetto se
inspiraria em Tania para batizar a sua primogênita, que nasceria no ano
seguinte. Pois de tudo que Jacyr aprendeu lendo sobre a história de Tania, o
que mais lhe marcou foi que Tania era sinônimo de coragem. Para Jacyr, o nome
conferido a sua filha era muito mais que um registro que servia para
identifica-la como indivíduo. O nome Tania tinha e tem muito a ver com o
propósito de vida, o compromisso com um projeto de sociedade, que é sempre
coletivo, nunca individual. Um nome nunca se resume a pessoa que o porta. Ele
tem a ver com a relação dessa pessoa com muitas outras pessoas. Tania era um
estado de espírito, presente na menina que deu sua vida na luta contra o
nazi-fascismo em Petreshevo, e que inspiraria os passos de outra, a partir de
Campos dos Goytacazes:
Ele falava
assim, Tânia Barbetto sem medo [grifo meu]. Tânia
Barbetto, quem não sabe, não se meta. Ele não botou o sobrenome da minha
mãe, que é Viana. Seria Tânia Viana Barbetto. Ele falava que não gosta de nome
de mulher grande, Tânia, e falava assim, eu tinha tudo para política, se
eu quisesse o nome de guerra, que é o Tânia, Russo, e o sobrenome
Barbetto, mas eu era livre, nunca para agradar.
Tão corajosa, dedicada e
preocupada em servir ao próximo, solidária e patriota como sua homônima, Tania
Barbetto decidiu ser médica. Sempre esteve ao lado do pai na sua luta contra as
injustiças sociais e atrocidades da ditadura empresarial-militar.
Eu queria
fazer arquitetura, quando eu era criança eu achava que eu ia fazer
arquitetura. Depois eu achei que eu ia fazer medicina para ir para a
África. O papai falava que eu ia para a Nicarágua, trabalhar lá com o
Daniel Ortega, que era amigo dele. Mas eu fiz medicina e não faria outra
coisa...
Tania Barbetto na escola. Acervo Pessoal de Tania Barbetto
Tania e Jacyr numa tarde ensolarada dos anos 80, posando para uma foto na Praça São Salvador em Campos. Acervo Pessoal de Tania Barbetto
E Tania segue na luta, não apenas em
defesa do SUS, como também pela memória do pai Jacyr, falecido em 1987. Seus relatos
e os documentos que guarda com tanto denodo e carinho são fundamentais nesse
esforço em prol do reconhecimento da trajetória valiosa de Barbetto pela defesa
da democracia e dos direitos dos trabalhadores.
Essa é a grande desafio de Tania hoje, fazer com que toda a luta de seu pai Jacyr não seja esquecida. Que toda as perseguições e violências das quais ele foi vítima possam ser reconhecidas pelo Estado brasileiro; que a sua memória volte a ser honrada na cidade ao qual ele tanto se dedicou o seu trabalho de militância.
Mais importante, essa não é e não pode ser apenas uma luta de Tania - ela é de todos e todas nós; tal luta tem de fazer parte de um esforço coletivos de nós que acreditamos no poder da memória histórica enquanto instrumento político poderoso na construção de um presente que não repita as tragédias do passado.
Referencias
bibliográficas:
“The
death of Zoya Kosmodemyanskaya”, disponível em: https://www.ww2today.com/p/the-death-of-zoya-kosmodemyanskaya.
Acesso em 03/10/2025.
KHAKIMOVA,
Yulia. “How an 18-year-old girl became a hero of the USSR”, disponível em: https://www.gw2ru.com/history/946-zoya-kosmodemyanskaya-hero-of-the-ussr.
Acesso em 03/10/2025.
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