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Carlos Salvador Jr.
Graduando do Curso de História - UFF/Campos





            Como arrumar tempo livre? Esse é um questionamento muito presente hodiernamente. A carga horária de trabalho sempre foi voltada para o atendimento da demanda de pedidos. Trabalha-se muito para produzir muito. Essa era a ética de acumulação pós-revolução industrial. Até mesmo ter ingerência nas horas dormidas do trabalhador, se fazia necessário pois tinha que entrar muito cedo nas fábricas e sair muito tarde para atender a produção, ou seja, horas trabalhadas sempre maiores que as horas “dormidas”. No Uruguai não era diferente. Com financiamento britânico (sobremaneira para fomento das indústrias e ferrovias), um auspicioso momento político e econômico era vivido no início do Século XX. Exportava-se muita carne bovina e lã. Primeiro Presidente eleito com voto direto e universal, instituição do voto feminino (primeiro país sul-americano a fazê-la), reforma na Constituição, são alguns feitos da república uruguaia, obtidos nessa época. Nessa toada de se adequar aos anseios capitalistas que regiam a sociedade, foi aprovada a legislação trabalhista que regulou as relações de empregador e empregado, estabeleceu direitos e deveres trabalhistas, bem como formalizou as profissões perante o Estado, e consequentemente determinou as horas trabalhadas e o período de descanso. Ora, o próprio sistema que outrora exauria o trabalhador, exigindo disponibilidade total e sem respeitar o repouso necessário, agora, por lei, concedia o “tempo livre” para o trabalhador, longe dos “tentáculos” da fábrica, podendo agora descansar e realizar atividades mais prazerosas, hedonisticamente falando. Práticas realizadas ao “ar livre” foram difundidas. Primeiro porque com o descanso legal do trabalhador, contava-se com contingente bem maior de praticantes, segundo por serem públicas, eram mais acessíveis, visto que ao presenciar, aguçava o interesse em participar. Inclusive militantes da esquerda utilizavam essa disponibilidade para difundir com mais eficácia o ideário comunista e ao mesmo tempo, aproximar das classes trabalhadoras. E, no exercício dessas práticas, se destacou o futebol. Ele mesmo, que vindo da Inglaterra, chegou nas Américas com status elitista, no Uruguai, já na década de 20, estava difundido nos diversos estádios, campos e “campinhos” de bairros e de praças, ao ponto de em 1924 ter mais de 100 (cem) clubes associados nas diversas divisões da Associação Uruguaia de Futebol (AUF). Isso sem mencionar as ligas de bairro em nível regional (as denominadas ligas obreras). Assim, com maior tempo de contato, as concepções comunistas propagadas no Uruguai, foram tomando forma. A coletividade é o norte do comunismo, e imiscuir-se no esporte (futebol) que é praticado coletivamente, daria o condão de legitimidade que a esquerda almejava. Se vence, vence todo mundo. Se perde, perdem todos. Uma pessoa, por mais poder que exerça sobre as outras (burguês), não consegue ganhar sozinha. Ou seja, o futebol é um esporte coletivo, repleto de simbolismos que os comunistas uruguaios apropriaram-se, inclusive da paixão pelo clube oriundos das fábricas, onde jogam os companheiros de laboro. Se é para amar, ame seu clube e não o capitalista que explora a força de trabalho.









A consequência da difusão do esporte em território uruguaio não demoraria a acontecer. Uruguai na primeira metade do Século XX era uma potência futebolística mundial. Afirmação embasada em números. Ganhou 06 (seis) das 10 (dez) Copas Américas disputadas e se tornou bicampeã “olímpica” de futebol e campeã mundial jogando com amadores, contra seleções que contavam com profissionais, pois o profissionalismo no Uruguai só ocorre em 1932. Nesse momento, azado se faz explicar as aspas na palavra “olímpica”, inclusive no título do presente verbete. Não se trata de erro material de digitação. Trata-se de uma reparação histórica que a maior entidade do futebol mundial, não se debruça sobre as provas inequívocas e irrefutáveis que existem, inclusive nos seus anais, ou, utilizando o tempo verbal correto, não quer se debruçar. Os títulos de 1924 e 1928 considerados olímpicos, na verdade, são mundiais, organizados pela FIFA (o que antes desses jogos não ocorreu), com a participação de 22 e 17 seleções, respectivamente, que representaram 05 (cinco) continentes. Por meio de documentos oficiais da FIFA e da Federação Francesa de Futebol (ambas presididas por Jules Rimet), tem-se a autorização do COI (Comitê Olímpico Internacional) para realizar a competição em caráter de mundial dentro das Olimpíadas de 1924 e 1928. Pesquisadores (pró reconhecimento) como Pierre Arrighi1, seguem a acertada linha de validar por meio de provas documentais a competição de 1924 como Mundial (inclusive escrevendo livros repletos de teses e provas documentais), por ser a primeira, e uma vez reconhecida, automaticamente e por analogia, a competição de 1928 também será. Teses como a pluralidade continental; direção do torneio por poderes desportivos do futebol; classificação de caráter mundial para a competição; certame amplamente divulgado pela imprensa2; e, competição aberta a todas categorias futebolísticas, sem exceção compõe o suporte probatório que visa homologar os títulos como mundiais. Como contradições e incongruências da FIFA não é “privilégio” contemporâneo, a mesma autoriza a AUF (Associação Uruguaia de Futebol) o uso de 04 (quatro) estrelas em seu escudo, mas no sítio oficial, não reconhece os títulos de 1924 e 19283. O ex-presidente da FIFA Joseph Blatter (afastado por corrupção), declarou em entrevista que não houve mundial em 24 e 28, o que não representa muito. Não pela índole, mas pela decisão final se tratar de provas documentais e não de opinião pessoal. Pelos documentos que se prova a verdadeira intenção dos organizadores, tanto do COI, quanto da FIFA e da FFF (Federação Francesa de Futebol) as duas últimas presididas pela mesma pessoa. Até mesmo considera-se o problema de semântica, pois somente em 1982 que a FIFA cria o conceito de Word Cup. Antes cada parte do mundo se referia à competição de forma diferente. Dizer que as olimpíadas não era mundial, por ser olimpíadas é deveras superficial e relativo. Mais certo seria afirmar que 1924 e 1928 foram disputados mundiais dentro das olimpíadas, devido a incapacidade financeira e organizacional da FIFA em realizar um torneio próprio. Muito se fala em retaliação da FIFA por o Uruguai não ter defendido seu título mundial na Copa de 1934, devido a debandada de países europeus antes da Copa de 1930, vencida pelo Uruguai. Muitas teorias, teses, conjecturas políticas impedem a resolução da celeuma, mas o que o mundo reconhece (além da FIFA) é a garra charrua, o espírito dos índios de sempre chegar na frente, viver, vencer, trabalhar, jogar com o coração, com vontade. Mesmo sem qualidade, logra-se êxito pela determinação. Em “quatro” mundiais, o Uruguai jogou 18 (dezoito) partidas, ganhou 16 (dezesseis) e empatou 02 (duas). Campanha vitoriosa invicta, laureada de glórias desportivas que os amantes do futebol admiram, reconhecem e assinam embaixo (como ou sem a FIFA).                  











FONTES:


PORRINI, Rodolfo. Izquierda uruguaya y culturas obreras. Propuestas al `aire libre´: el caso del fútbol (Montevideo, 1920-1950). Montevideo: Diálogos, 2012.


1 ARRIGHI, Pierre. 1924, Primera Copa del Mundo de Fútbol de La FIFA. Colombes, Francia:   
  2014.
https://www.youtube.com/watch?v=gY6pV9nCP9w (entrevista do autor para uma emissora de rádio)


2 JORNAL DO BRASIL – DIÁRIO DESPORTIVO

(matéria completa do título de 1924) 10/06/1924 - edição 139 – (pág. 16)

(felicitações aos campeões olímpicos e com o agendamento da presença no Rio de Janeiro e a recepção do presidente da federação do Uruguai) 12/06/1924 - edição 141 – (pág. 14)

(matéria completa do título de 1928) 14/06/1928 – edição 143 – (pág. 13)


3 SÍTIO DA FIFA (OMISSÃO DOS TORNEIOS DE 1924 E 1928).





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